"Nelson Cavaquinho", o registro fiel de uma lenda da MPB
Quem foi, de fato, o músico e compositor carioca Nelson Antonio da Silva (1911-1986), que virou lenda sob a alcunha mitológica de Nelson Cavaquinho? Um bardo ou aedo, como na Europa antiga, encarregado dos cânticos de sua gente? Um trovador, da lírica medieval, empunhando um alaúde? Um menestrel, cantador de histórias? Ou um griot africano, guardião das tradições, transmitidas de forma oral a seu povo? Desprezando as habituais regras do show bizz, na maior parte de sua trajetória, Nelson Cavaquinho doou sua nobre arte de bardo, menestrel, griot, trovador - de bar em bar. Do Cabaré dos Bandidos, da Praça Tiradentes, no Centro do Rio, ao Baixo Leblon, na zona sul. Projetado como intérprete, a partir das noitadas do restaurante Zicartola, também no Centro, de seu compadre mangueirense Cartola e a esposa Dona Zica, ele zanzou por alguns shows profissionais, mas gostava mesmo era da boêmia, eventualmente financiada por parcerias inexistentes. Como capturar uma arte tão for a dos padrões, sem macular sua autenticidade de joia bruta?
Foi o desafio a que se propôs o produtor e estudioso da cultura popular, o paulista de São José do Rio Preto, João Carlos Botezelli, o Pelão (1942-2021). O disco “Nelson Cavaquinho” (1973) foi sua estreia, numa proposta audaciosa ao então diretor da Odeon, Milton Miranda. O compositor já tinha gravado dois discos, mas nenhum deles o retratava. “Quero colocar o verdadeiro Nelson no disco. O Nelson dos bares, o Nelson que eu sinto. Ele e o violão dele, com o suor dele”, projetou o produtor, em diálogo reproduzido em sua excelente biografia, “Pelão, a revolução pela música” (Garoa Livros, 2020), de Celso Campos Jr. Aprovado o projeto, foi convocado o arranjador José Briamonte, ligado ao minimalismo da bossa nova, que orquestrou “Eu e a brisa”, clássico de Johnny Alf. Ele foi instado a emoldurar com sutileza o violão arrevezado de Nelson, de acordes estilingados, tocado na vertical, e sua voz roufenha, flambada em noitadas etílicas e cigarros sem conta. Briamonte dispensou ornamentos, fixando-se na percussão e coro e eventuais sopros comentaristas.
Como a flauta, que rodopia numa das raras composições do autor de tônus otimista, a celebrante “Minha festa”: “Graças a Deus minha vida mudou/ quem me viu, quem me vê/ a tristeza acabou/ contigo aprendi a sorrir”. Ou o trombone esgarçado, que pontua o sarcasmo do lento samba dissonante “Pode sorrir”: “Não precisa me humilhar/ nos olhos da mulher/ eu sei quando ela quer abandonar o lar”. Ambas são assinadas com o parceiro de fato, Guilherme de Brito, a quem Pelão reservou um lugar de honra no roteiro. “Somos compadres, somos amigos e somos parceiros, graças a Deus”, apresenta Nelson, antes de engatarem quatro clássicos. “A flor e o espinho” (com Alcides Caminha), do célebre verso “tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor”, desfila no vozeirão seresteiro de Guilherme, que seria o autor da metáfora.
Ele também pontifica nos graves de “Quando eu me chamar saudade” (“por isso é que eu penso assim/ se alguém quiser fazer por mim/ que faça agora”), enquanto Nelson esgrime “Se eu sorrir’ (“chega de chorar/ pois sofrer é minha sina”) e a ode verde e rosa “Pranto de poeta”: “Em Mangueira, quando morre um poeta/ todos choram/ vivo tranquilo em Mangueira porque/ sei que alguém há de chorar quando eu morrer”. A escola de samba também é exaltada na obra prima “Folhas secas”, mais uma parceria com Brito, que ocasionou um confronto entre duas divas. Nelson a tinha composto para Beth Carvalho, mas o arranjador de seu disco, Cesar Camargo Mariano, também estava produzindo o disco de Elis Regina, com quem era casado na época. Ela atropelou a concorrente, e saiu um mês antes, com sua versão para este estro de mestres: “Quando piso em folhas secas/ caídas de uma mangueira/ penso na minha escola/ e nos poetas da minha Estação Primeira/ não sei quantas vezes/ subi o morro cantando”.
Em mais uma audácia de produtor estreante, Pelão pediu a Nelson para desarquivar das memórias de início de carreira, o cavaquinho que lhe valeu o nome artístico. Gravou com ele seu choro instrumental “Caminhando” (com Nourival Bahia), calçado pelo violão do sábio Dino 7 Cordas. Também do passado, lançado pelo cantor Ciro Monteiro, em 1946, é outro míssil poético, “Rugas”, com Ary Monteiro e Augusto Garcez: “Se for pensar muito na vida/ morro cedo amor/ meu peito é forte/ nele tenho acumulado tanta dor/ as rugas fizeram residência no meu rosto”. Antes de interpreta-la, com a voz crestada e o violão assimétrico beliscado por polegar e indicador, Nelson informa na gravação: “É uma das músicas que quando eu encontro o Vinicius de Moraes e o Carlos Jobim (sic) eu canto pra eles”.
Não é para menos. O gênio musical regravado por Baden Powell, Nara Leão, Leny Andrade, Caetano Veloso, Luis Melodia, Angela Ro Ro, Jards Macalé, ultrapassou todas as fronteiras estéticas com sua cortante e refinada filosofia de botequim. Capaz de abarcar “O bem e o mal” (“eu plantei o bem/ e vou colher o que mereço/ a felicidade/ deve ter meu endereço”) e o definitivo e compassado “Juizo final” (com Élcio Soares): “Quero ter olhos pra ver/ a maldade desaparecer”.
Parceria com o portelense Jair do Cavaquinho, “Vou partir” (“não sei se voltarei/ tu não me queiras mal/ hoje é carnaval”) se encaixa entre os raros sambas francamente celebrantes deste malabarista da dor. Como ele decanta em “É tão triste cair” (“ontem, subiste eu desci/ hoje eu subo tu desces”), “Visita triste” (“os meus amigos/ não respeitam a minha mágoa”) e na saga de “Mulher sem alma” (“Quase passei fome/ pra honrar seu nome”), mais uma com Brito. A memorável odisseia de “Rei vadio” sumariza este Homero de pele preta e verso indomável: “Noites eu varei/ mas cada amor me fez um rei/ um rei vadio/ um poeta tão sem lei”. (Tárik de Souza)